MEIO AMBIENTE Reservas indígenas: Entenda a importância do julgamento do marco temporal no STF

Indígenas durante protesto contra o marco temporal diante do STF, em Brasília

Mais de 6 mil representantes de 147 povos originários do país estão acampados em Brasília para realizar uma série de protestos contra a tese do marco temporal nas demarcações de territórios indígenas (TIs), que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o assunto não diz respeito apenas às partes que reivindicam essas áreas do Brasil. Este vem sendo considerado um dos debates mais importantes da Corte em 2021, já que diz respeito ao país todo.

Os ministros vão decidir sobre o argumento do marco temporal, segundo o qual os povos originários só podem reivindicar territórios que ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada. Líderes indígenas e pesquisadores da área afirmam que a tese, apoiada pelo STF em 2008 ao analisar um caso específico, ignora a história de etnias que não estavam nas suas respectivas terras em outubro de 1988 porque, entre outros motivos, haviam sido expulsas.

 

Encontro de povos indígenas na Câmara dos Deputados em 1984

O uso do marco temporal tem sido um grande obstáculo à demarcação das TIs. Nesta quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro se posicionou a favor da tese dizendo que se o argumento for derrubado, “inviabilizaria” a agricultura no Brasil. Entretanto, cientistas se apoiam em estudos do clima para rebater esse argumento afirmando que as reservas indígenas preservam o meio ambiente e, por consquência, contribuem para o regime de chuvas que garante a irrigação de boa parte das plantações no país. É da Floresta Amazônica que sai uma parcela relevante da umidade responsável pelas chuvas no Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil.

Para explicar o histórico da discussão que chegou à corte máxima do país, é necessário, então, voltar à promulgação da Constituição Federal. Certidão de nascimento da democracia brasileira, a Carta de 1988 trazia consigo o Artigo 231, que diz o seguinte: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las”. Fruto de mobilização de indígenas e ambientalistas na Assembleia Constituinte, o texto não condiciona a demarcação de reservas a nenhuma data.

 

Protesto diante do STF durante julgamento sobre a reserva Raposa Serra do Sol, em 2008

Porém, mesmo com a legislação favorável às reservas, os processos de demarcação continuaram sendo alvo de questionamentos na Justiça por parte, principalmente, de ruralistas e governos locais. Um dos casos mais complicados foi o da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Os trâmites para sua ratificação se arrastaram por anos, e as contestações continuaram mesmo após a homologação final, em 2005, pelo governo federal. Em 2009, o STF confirmou a homologação e encerrou disputas legais na região. Porém, em um trecho da decisão, a Corte favoreceu a tese do marco temporal, afirmando que o reconhecimento de uma TI estaria assegurado pela constatação de que a mesma estivesse ocupada por seu povo originário em 1988.

Inicialmente, portanto, a tese do marco temporal serviu para favorecer as etnias daquela área no Norte do Brasil. Porém, não demorou até o argumento ser usado para contestar outras demarcações. As partes contrárias afirmavam que os povos indígenas que reivindicavam determinadas terras não estavam na região em disputa no 5 de outubro de 1988 e, portanto, não tinham direito ao território.

Só que o próprio STF esbaleceu que a decisão sobre a Raposa Serra do Sol não tinha repercussão geral. Ou seja, os posicionamentos ali só valem para o caso daquela terra indígena e, portanto, não podem influenciar outros julgamentos. Embora fundamental, a ressalva não impediu que o marco temporal se tornasse uma bola de neve jurídica. Em 2017, um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) determinou que o governo federal deveria se apoiar na decisão de 2009, o que criou uma série de obstáculos para novas demarcações em todo o país.

 

Protesto indígena no Palácio do Planalto, em 2013

Segundo advogados ligados à causa indígena, a tese do marco temporal não tem base constitucional porque o Artigo 231 não condiciona a demarcação das reservas a uma data específica. Além disso, eles afirmam que diversos povos originários haviam sido expulsos de seus territórios antes de 1988. E outros não teriam como provar, hoje, que estavam lá naquele momento, há mais de 32 anos. Há ainda casos de povos que não ocupavam seus territórios na data da Carta de 1988 devido ao caráter nômade de suas culturas, o que é garantido pelo texto da constituição.

O caso que está sendo analisado no STF ilustra muito bem a questão. Os indígenas do povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, foram vítimas da violência de colonizadores durante séculos até que, no século XX, os remanescentes da etnia foram afastados de suas terras originais. Mesmo assim, em 1996, eles coseguiram a demarcação de 15 mil hectares de território, que, em 2003, foi ampliado para 37 mil hectares. Porém, uma autarquia do governo catarinense reivindica a área com base no argumento do marco temporal. Ou seja, eles dizem que o território não pode ser demarcado porque os Xokleng não estavam lá em 1988. A demarcação foi sendo contestada até chegar no Supremo.

Fonte: William Helal Filho/Jornal O Globo/ Web TV Cidade MT

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