Conheça a história do Talibã, que nasceu e cresceu sobre escombros de invasões
Criado em 1994, nos escombros da ocupação do Afeganistão pela União Soviética (1979-1989), o Talibã é ligado à etnia pachto, majoritária no país e que participa ativamente da política local há séculos. Ahmed Shah Durrani (1722-1772), apontado como o fundador do Estado afegão moderno, era pachto, assim como boa parte de sua corte e dos exércitos que combateriam inimigos internos e e estrangeiros nos séculos seguintes.
Nos séculos XIX e início do XX, os britânicos empreenderam três guerras contra as forças afegãs, sofrendo reveses inesperados no campo de batalha — afinal, eram o maior império do planeta na época, e enfrentavam adversários com uma capacidade militar inferior. Nelas, obtiveram apenas um sucesso em 1880, e se retiraram em definitivo em 1919, depois de mais uma derrota.
Décadas depois, no contexto da Guerra Fria, o Afeganistão voltaria a ser invadido por uma potência estrangeira, a URSS. Em 1978, um violento golpe assassinou o presidente Mohammad Daoud e as lideranças que assumiram o poder deram início a um plano radical de reformas, marcado pela centralização da economia, perseguição a adversários e um caráter anti-islâmico.
Revoltas de milícias islâmicas colocavam em xeque o regime pró-Moscou e ameaçavam a integridade do Estado. Com isso, a URSS, temendo pela segurança de suas fronteiras e pela chegada de um governo hostil, invadiu o Afeganistão em dezembro de 1979.
Dinheiro e mísseis
Como os britânicos, os soviéticos obtiveram vitórias iniciais, contando com ataques aéreos e tropas bem equipadas. No entanto, fatores externos mudaram o cenário. No início dos anos 1980, dinheiro vindo do Paquistão e, especialmente, dos Estados Unidos, começou a chegar aos insurgentes, além de armas mais sofisticadas, como os lançadores de mísseis Stinger, que derrubaram dezenas de helicópteros. Voluntários de todo o mundo receberam treinamento e armas. Entre eles, estava Osama bin Laden, o saudita que fundaria a rede al-Qaeda.
Os soviéticos saíram em fevereiro de 1989, deixando um país arrasado. Tentativas de manter um governo funcional fracassaram, e os chamados “senhores da guerra” dividiram o Afeganistão entre si — algo que um grupo de estudantes de escolas religiosas no Paquistão via como inaceitável, e defendia uma mudança radical: era o nascimento dos talibãs, “estudantes” em pachto.
A ideologia do grupo tem como elemento central o Pashtunwali, código que rege a vida dos pachtos com valores como a bravura, a lealdade e o dever de proteger a própria cultura. O outro elemento é a visão extremista e distorcida do Islã, herdada de linhas de pensamento radicais das escolas religiosas.
Liderados por um veterano da guerra contra os soviéticos, o recluso mulá Omar, os talibãs conquistaram territórios ao redor do país, seja pelas ideias ou pela força. Em 1996, eles invadiram Cabul, fundando o almejado Emirado Islâmico.
Os cinco anos seguintes foram marcados por violações graves dos direitos humanos: mulheres passaram a ser impedidas de sair de casa e obrigadas a usar a burca, veste que cobre todo o corpo e que se tornaria símbolo da repressão. Supostas violações da lei islâmica eram punidas com a morte. Minorias eram obrigadas a pagar taxas adicionais ou fugir para não serem levadas aos tribunais religiosos.
O regime se mantinha com o apoio de Paquistão e Arábia Saudita, e não parecia ceder às ameaças estrangeiras —internamente, conseguia conter avanços de grupos inimigos, como a Aliança do Norte, seu principal rival neste período.
Mas o ocaso não viria de inimigos internos, e seria acelerado por um aliado: desde 1995, o grupo abrigava a rede terrorista al-Qaeda, de Osama bin Laden, o playboy saudita dos anos 1970 que adotou o jihadismo como estilo de vida após a invasão soviética.
Depois da primeira Guerra do Golfo, em 1991, quando os americanos instalaram bases militares na Arábia Saudita, a al-Qaeda declarou guerra aos Estados Unidos. A partir daí, o grupo comandou ataques ao redor do planeta, tendo como alvos embaixadas americanas na África e navios no Mar Vermelho, deixando centenas de mortos e marcando um novo capítulo no terrorismo religioso. A al-Qaeda controlava partes do território afegão, perto da fronteira com o Paquistão, atuando em combates e cometendo atrocidades contra civis. A situação relativamente confortável mudaria na manhã de 11 de setembro de 2001.
O sequestro de quatro aviões dentro dos EUA —dois deles arremessados contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, um contra o Pentágono e um quarto que caiu antes de chegar à capital americana — levou à mobilização da Otan, a aliança militar criada para se opor ao bloco socialista na Guerra Fria. O Artigo 5º da organização, segundo o qual um ataque contra um é um ataque a todos, seria aplicado contra a al-Qaeda e, por consequência, o Talibã.
Queda e nova ascensão
Sem aliados, o Talibã recebeu um ultimato para entregar as lideranças da al-Qaeda. O governo do grupo chegou a emitir uma ordem de expulsão, mas isso não impediu que as bombas começassem a cair em outubro de 2001, pondo fim ao regime e instaurando um governo pró-Ocidente. Bin Laden seria morto dez anos depois, nos arredores de Islamabad, no Paquistão.
Nos anos seguintes, um antigo ditado afegão resumiu a estratégia do Talibã: “Vocês (estrangeiros) têm os relógios, nós temos o tempo”. Após a intervenção, a milícia passou a organizar uma insurgência similar à vista contra os britânicos e os soviéticos. Um conflito que deveria durar meses ou alguns anos, se arrastou por duas décadas, ao custo de trilhões de dólares e centenas de milhares de vidas.
Além das armas, o Talibã adotou os atentados, atingindo bases militares e o novo governo afegão, visto como “anti-islâmico”. Expressões como “atoleiro” e “guerra sem fim” estamparam com frequência as análises sobre o conflito.
Na década passada, o grupo se aproveitou de reduções de tropas estrangeiras e da fragilidade das forças de segurança para ações recorrentes. A partir de 2020, depois da assinatura do acordo com os EUA que previa a retirada das forças estrangeiras em troca da participação do Talibã em negociações de paz, a ofensiva ganhou corpo, e a paz naufragou.
Agora, o Talibã está perto de retomar Cabul, quase 20 anos depois de ter sido derrubado do poder, e voltar a impor seu regime extremista, diante dos olhares atônitos da comunidade internacional.
Fonte: Filipe Barini/Jornal O Globo