Coragem. Esta é a primeira palavra que vem à mente ao ver corpos, como o de Rebeca Andrade, rodopiando no ar em diferentes direções e pousando com precisão

no chão. Afinal, qualquer pequeno erro pode levar a sérias lesões ou a algo mais grave, ainda que em raros casos. Não à toa, um dos elementos mais arriscados da ginasta se chama mortal, cujo grau de dificuldade se eleva de acordo com as variações, principalmente nos saltos e solo – a brasileira foi ouro na primeira, neste domingo, e disputa a final da outra na segunda-feira.

Mas por trás de toda a beleza plástica dos movimentos da ginástica, a coragem anda de mãos dados com a confiança. Quando abalada, por motivos internos ou externos, o que parece ser natural se torna realmente perigoso.

Foi o que aconteceu com Simone Biles no primeiro salto da eliminatória do individual geral. Numa espécie de pane, a ginasta americana se perdeu no ar, não realizou os elementos previstos, mas, ainda assim, conseguiu consertar a posição do corpo e aterrissar com segurança. Fosse outra atleta, com menos consciência corporal, o tombo teria sido feio. Um erro na execução aliado a excesso de treinos, por exemplo, causou fratura exposta no francês Samir Ait Said, na Rio-2016.

Depois disso, a dona de cinco medalhas olímpicas não alcançou mais eficiência nos treinos e desistiu, até o momento, das finais das barras assimétricas e do salto — abrindo uma disputa acirrada pelo ouro na qual Rebeca é uma das favoritas, hoje, a partir das 5h50. Voltou ao básico para se reconectar.

A brasileira passou por algo semelhante após a última cirurgia no joelho. Ela não repete mais os elementos de solo que fez quando rompeu o ligamento pela última vez — mortais para frente e para trás com piruetas na sequência. Na segunda-feira, ela tenta mais uma medalha no aparelho. Arthur Zanetti (argolas) e Caio Souza (salto) também competem. As finais começam às 5h.

— Desde pequenas, algumas crianças são mais corajosas que outras e já tentam fazer elementos difíceis, mas quem molda essa confiança dos ginastas é o treinador. É ele que vai colocando os movimentos aos poucos, explicando cada detalhe e mostrando que é seguro fazer num ambiente cheio de colchonetes e amparos. E deve perceber quando o atleta não está pronto ou não está seguro, pois o risco de lesão nesses casos é grande. Nessas horas, se for em competição, deve-se mudar a série ou desistir— explica Daniel Biscalchin, treinador do ginasta Diogo Soares, finalista do individual geral masculino.

Mas o que acontece com o corpo treinado diariamente que, de repente, se torna incapaz de fazer os movimentos com a mesma perfeição?

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Doutor em biomecânica e consultor do COB, Franklin Camargo explica que os ginastas precisam desenvolver nos treinamentos um mapa de orientação espacial avançado, que envolve a compreensão de todos os sentidos do corpo, muito além dos cinco mais conhecidos.

Atenção aos detalhes

Esses sistema multifatorial, com receptores por todo o corpo, são capazes de identificar variações de pressão, velocidade e tensões de músculos, tendões e articulações. São essas informações que o corpo dá ao atleta que lhe permite saber onde se encontra no espaço e o que deve fazer a cada milésimo de segundo. Torna-se natural com os treinamentos.

— Os ginastas criam marcadores de diferentes tipos para organizar o corpo no espaço. Mas as emoções também fazem parte do sistema límbico. Se há alguma alteração emocional, há interferência na capacidade de atenção por meio dos receptores. Esse retardo em perceber o espaço abala a orientação. O ginasta perde a atenção continuada, não sabe mais se fez um ou dois giros e não sabe quando acabar. Só vai saber quando tiver a referência do solo. Uma pequena variação de 1 grau no ângulo do corpo faz com que ele dê um passo para trás, 3 graus, cai sentado. A partir de 7 graus, não chega em pé — diz Franklin.

Daí a importância ainda maior do acompanhamento psicológico de ginastas de alto rendimento. Ao contrário de outros esportes, na qual a questão mental afeta apenas o desempenho, na ginástica, isso também coloca o atleta em risco.

— É uma modalidade que envolve controle motor para a segurança física. Para existir essa segurança, a priori, é necessário um estado de segurança psíquica. É importante que o atleta consiga se reconhecer, perceber suas vulnerabilidades e trabalhar os pontos que tem medo, entender por que as emoções surgem e tomar decisões a partir disso. Quando isso não acontece, o risco é imenso, pois está mais vulnerável e nem sabe — afirma Aline Wolff, líder da área de preparação mental do COB.

Fonte: Tatiana Furtado/Jornal O Globo